Depois das histórias da Bíblia, da Odisseia, da Ilíada, da Epopeia de Gilgamesh, das Mil e Uma Noites, depois do Dom Quixote, o que mais podemos esperar de uma história? Todas já foram contadas! No entanto, mais uma vez nos surpreendemos com a narrativa de Abbas Kiarostami em seu último filme, Um Alguém Apaixonado. Trata-se do encontro de uma garota de programa com um ancião. Após Yasunari Kawabata em seu livro, A Casa das Belas Adormecidas, depois de Garcia Marques em seu Memórias de Minhas Putas Tristes; depois de O Anjo Azul, filme de 1930, em que um respeitado professor tem sua vida degradada tragicamente por causa da paixão por Lola Lola, protagonizada pela deslumbrante Marlene Dietrich, o que podemos esperar de mais um filme que trata do mesmo tema? Novamente um ancião, novamente um professor no final de sua existência, ansiando por laivos de juventude e beleza, quase nos seus estertores, encontra uma jovem a quem dedica os últimos momentos de sua vida. Essa a proposta aparente de Kiarostami, que num jogo de desvelamentos que jamais revela, encanta e fascina o espectador em sua manipulação de véus, numa dança onde aparecem e desaparecem indícios que prendem o espectador do primeiro ao último segundo do filme. Os detalhes sutis vão deixando fios tênues que um detetive, ligado na lógica da poesia, vai juntando sem muita certeza: uma foto, outra foto, uma sopa de pequenos camarões, típica de um povoado longínquo de onde vêm Akiko, a jovem que vai encontrar o professor; a insistência dele que seja ela, e não uma amiga, a escolhida para o encontro; a conversa da vizinha, que sabe do passado do velho e coloca algumas pedras do quebra cabeça, poucas e embaralhadas, na sua conversa longa e fofoqueira de quem vive a vida pela janela, espionando o vizinho. A atuação extraordinária dos atores agrega qualidade ao talento de Kiarostami ao explorar, de modo impressionantemente à vontade as nuanças do ambiente e da psicologia japonesa. O amplo arco mundano de seu conhecimento e sofisticação aparece também na trilha sonora. O mesmo jogo em que as aparências confundem, realizado em seu filme anterior, Cópia Fiel, em que nunca se sabe exatamente a relação entre as pessoas, Kiarostami nos brinda aqui novamente, no filme Um Alguém Apaixonado. Presente precioso que levamos para casa e que nos acompanha ao som da voz de Ella Fitzgerald na canção que dá título ao filme.
“Um Alguém Apaixonado”, de Abbas Kiarostami
Last modified: setembro 15, 2018